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  • Foto do escritorFellipe Ramos Pereira

Segurança alimentar: a conta não fecha!

Tive um bloqueio de escrita esse mês. Tentei várias vezes (de novo) e nada vinha. Escrevi, escrevi e nada. Várias ideias iniciadas mas nenhuma com uma possibilidade simples de conclusão. Foi um mês difícil. Não acho que essa dificuldade desse mês foi só um problema particular. Me parece que as pessoas estão meio desesperadas, sem dinheiro, querendo que o ano acabe e que o próximo seja melhor. Ao menos as pessoas do meu convívio. Eu andei meio esquecido, meio cabisbaixo. Muitas vezes eu pensei qual era o motivo disso. O que causava angústia. É que tem tanta coisa que nem sei por onde começar, mas vamos lá.

Tem um fato que é social. A vida coletiva está muito difícil. A vida das pessoas comuns, das pessoas normais, o povo, a gente pobre, a maioria das pessoas está vivendo muito mal. Não é de agora isso, faz tempo né? Há mais ou menos uns quinhentos anos que a vida por essas quebradas anda bem ruim. Cada vez mais se perpetuam relações de exploração, de superfaturamento sobre o trabalho do pobre. Parece que não tem solução né? Mas um dia (espero que em breve) precisamos pelo menos começar a dialogar sobre uma outra forma de estar em conjunto com outras pessoas. Precisamos iniciar o debate e as ações para que as relações de trabalho e da falta dele sejam menos violentas. Do jeito que tá não dá.


Você deve estar se perguntando: mas esse cara tá falando de uma coisa muito geral, muito abstrata, exploração, trabalho, organização social. Tudo confuso.


É, tá tudo confuso mesmo, e eu não tenho cacife para explicar tudo isso. Não tenho reflexão suficiente para falar de temas tão complexos e que custam muito caro ao povo. Mas é isso, tem uma coisa grande que precisa ser mudada e essa coisa grande nem é tão complexa, nem tão difícil de entender. Houve um tempo atrás, pouco tempo que isso havia diminuído muito, mas agora está aí, o velho inimigo que ficou a espreita, meio que se escondendo nas pessoas que estavam em situação de rua e a gente achava que não era mais um problema tão grande, nem que havia tão pouca compreensão do senso comum. Esse problema é a fome.



#pracegover ilustração apenas com traços com um homem com barba e cabelo comprido revirando uma lixeira sobre um fundo amarelo. Acima escrita em vermelho, a seguinte frase: "O maior espetáculo do pobre, hoje, é comer". Na linha abaixo o nome da autora, Carolina Maria de Jesus.


Meu primeiro registro em carteira de trabalho como educador social é lá pelos anos de 2009, e até 2015 convivi diariamente com centenas de crianças e famílias em situação de vulnerabilidade social. O Brasil estava em crescimento, o bolsa família colocou muita criança que ficava em circulação dentro das escolas e a coisa parecia que ia andar neste sentido. Cada vez mais segurança alimentar para as famílias com ofertas de merenda em escolas, espaços de contraturno e afins. Os mais vulneráveis acabavam de uma forma ou de outra fazendo duas, às vezes quatro refeições por dia, muitas dessas pessoas conseguiam manter essa rotina de alimentação todos os dias. Para as famílias que estavam desorganizadas a rede de proteção conseguia de certa forma garantir cestas básicas emergenciais ou sistemáticas para tentar romper o ciclo da fome. De 2009 a 2015 poucas crianças me abordaram para falar da fome.


De 2015 até nossos dias a coisa mudou muito. Durante esse passado mais recente de isolamento e crise a coisa ficou muito mais feia. As pessoas tem passado muita fome. Hoje com a crise em alta e o preço dos itens mais básicos também em alta até mesmo famílias organizadas com casais com emprego fixo, empreendedorxs e etc estão sofrendo para comprar alimentos para suas famílias. Faz as contas aí. Pensa em um casal, cada um com um salário mínimo. A conta não vai fechar. E é preciso lembrar que as pessoas não só comem. Existem outras coisas que precisamos em nossa sociedade como roupa e outros artigos. A conta não fecha, sabe? Para duas pessoas formando uma família a conta já não fecha. Agora pensa em uma família com filhos. Aí a conta fica muito estranha, não é? Negativa demais.


Pois é. As relações de trabalho e renda estão ligadas a estas questões. Para além da catástrofe do desemprego, para além das violências cíclicas que impactam muitas famílias brasileiras de forma extrema. É necessário colocar em discussão essas relações, ou melhor, colocar em pauta a exploração da classe trabalhadora em diversos aspectos. Mas essa conversa vai ser longa, porque aqueles que mandam querem que a gente acredite que é justo, que só depende de você, do seu esforço, etc. Mas não, não depende só do esforço individual de cada um, existe uma estrutura de exploração que coloca a maior parte da população na miséria, com poucos recursos, usufruindo pouco dos bens que a humanidade construiu, por mais que essas pessoas se adequem ao sistema, trabalhem e tudo, a conta não fecha.


Então, vamos voltar um pouco no início do texto e reafirmar esse papo é longo, eu preciso estudar mais, ler mais, refletir mais para conseguir escrever sobre ele. Não sei se conseguirei. Na verdade eu escrevi sobre ele porque eu descobri que foi por causa dele que não conseguir terminar nenhuma das minhas ideias de texto. Vou explicar melhor.


Na semana anterior era minha data de entrega deste texto aqui. Tinha desenrolado meio que na pressa um texto, uma “croniqueta” sobre os meninos mimados que foram gritar sua idiotia durante uma sessão na câmara de Campinas para uma vereadora negra eleita, assunto indigesto também né? Falta um parágrafo para o final do texto (era o parágrafo de enfrentamento) e eu arreguei. Toda hora sentava e tentava, saía mais um pouco, mas não fechava. Atrasei o texto e tentei de novo e de novo e nada.


Quarta-feira. Data limite. Precisa postar, dizia um relógio interno e eu sabia que mais cedo ou mais tarde a Bruna me mandaria uma mensagem perguntando: “Oi Fe, tudo certo?”. Eu iria responder: “Oi Bru, tá tranquilo, hoje eu fecho o texto e posto. Desculpe ter sido em cima da hora”. Mas eu ainda tinha que cumprir meu dia de trabalho como educador para a noite terminar o texto. Durante a oficina um educando me cercou quando eu estava longe dos outros e disse:


- Professor, precisa de uma cesta lá.

- É memo? Como é que tá lá? Pra quanto tempo tem, tem até amanhã? Eu perguntei.

- Não, já acabou. Precisava agora.

- Vou tentar.


Respondi saindo para levar a informação para a pessoa que cuida disso entre os profissionais. Foi uma conversa rápida. Bateu um milhão de sensações enquanto eu caminhava a passos largos. Demorei uma semana para processar, para entender que não poderia escrever sobre outra coisa, que tinha que escrever sobre isso. Nem vou falar como só uma semana depois eu descobri que era isso que fazia com que o texto não saísse, mas também não é uma história fácil. Vou falar outra coisa:


A fome atropela tudo. Com a fome não tem discussão. Mas a fome tem pressa, tá ligado? Faz quase dois anos que as pessoas estão passando fome, tá ligado? A fome tem uma urgência muito grande, é pra ontem, saca? Preciso falar que não dá pra continuar assim, é preciso um pacto social entre todas as camadas da sociedade para que a fome deixe de ser uma coisa corriqueira nas quebradas do Brasil. Eu disse entre todas as camadas da sociedade, mas sei que os verdadeiros beneficiários da fome (os mais ricos) não querem saber dessa conversa. Pelo contrário: lucram com a urgência da fome, brincam com a fome do filho dos outros, para eles, ou para você que leu esse texto até aqui preso em seus preconceitos, achando que o problema da fome é só de quem passa, deixo as últimas duas estrofes de “Poco” das gêmeas mais foda do Brasil no momento, Tasha e Tracie:


“Não ora por mim, eles vão precisar ora por eles, nóis sabe trabalhar E eles sem nos nem sabe viver, nóis nasceu preparado Se ficar cada um por si vai ser bem pior pro seu lado

Visão turva e amarelo fome Maria Carolina morreu pobre A culpa é deles eles sabem e por isso não dormem com medo Do levante dos que não comem”

Vamos trabalhar para cessar a fome e para fomentar o levante, a culpa é deles e eles sabem. Cabe a nós exigir que esse problema cesse imediatamente. Eles, aqueles que tem medo do nosso levante, aqueles que sabem que a culpa é deles, é bom participarem desse primeiro passo contra a fome, porque a gente vai cobrar, e não demora, a fome urge.



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